Com o intuito de contribuir para o debate e reflexão sobre a eleição de Donald Trump, o Conselho Português para a Paz e Cooperação divulga uma análise publicada pela organização irmã Conselho de Paz dos EUA logo após as eleições presidenciais e agora traduzida para português.

Conselho de Paz dos EUA

25 de Novembro, 2016

Sumário executivo:
No que se refere à vitória eleitoral de Donald Trump, o Conselho da Paz (CP) dos EUA primeiramente saúda todas as manifestações maciças em luta para melhorar as condições de vida dos trabalhadores, salvar o meio ambiente, respeitar as mulheres, contra o racismo, de apoio aos imigrantes e rejeitando a islamofobia. Embora muito do que Trump disse durante a campanha e o que ele significa é divisionista e destrutivo, é pouco provável que a maioria dos apoiantes de Trump tenha votado com base nas culpabilizações de Trump. Muitos, se não a maioria destes eleitores, manifestavam a sua ira com décadas de políticas de interesses económicos corporativos e de "globalização" que os deixaram mais pobres, isolados e sem voz. Enquanto o CP EUA apela à oposição às muitas guerras, ao aumento da militarização e da proliferação de armas nucleares, as afirmações inconsistentes de Trump oferecem uma oportunidade para insistir que o futuro Presidente Trump prossiga posições positivas, como a distensão com a Rússia, pôr fim à guerra na Síria e sugestões que a NATO está ultrapassada. As suas acções irão necessariamente enfurecer quer os republicanos quer os democratas do sistema e os eleitores anti-sistema. O movimento de paz e outros movimentos de massas nos EUA devem seguir as palavras de Mother Jones, "não lamentem, organizem", aumentem o nosso alcance e acções. Organizar para aquilo em que acreditamos e dar as boas-vindas aos eleitores anti-sistema que se juntam à luta.

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Depois de uma longa e amarga campanha presidencial, que mais uma vez trouxe à superfície alguns dos aspectos mais vergonhosos da realidade social em que vivemos, Donald Trump, um dos mais controversos candidatos presidenciais na história recente dos Estados Unidos, conseguiu vencer as eleições com a ajuda do nosso antiquado e antidemocrático sistema de colégio eleitoral.

A eleição do Trump deu aso a uma enorme onda de medo, estupefacção e desespero entre dezenas de milhões de estado-unidenses – afro-americanos, mulheres, imigrantes, muçulmanos e muitos outros grupos marginalizados e oprimidos da nossa sociedade, bem como os muitos que temem as alterações climáticas e a aceleração da degradação ambiental – levando de imediato a manifestações de massa contra os resultados das eleições em todo o país e muitas das atitudes do presidente-eleito. Este suscitou uma grande quantidade de discussão e debate no nosso movimento pela paz e justiça sobre as raízes profundas dessa dramática viragem à direita na política dos EUA e o seu impacto futuro sobre as vidas de milhões de pessoas nos Estados Unidos e em todo o mundo.

Não há dúvida de que uma explicação completa deste inesperado desenvolvimento exigirá mais tempo e análise profunda dentro do movimento popular. No entanto, estimativas iniciais das causas são possíveis e necessárias. A nossa análise deverá incidir sobre a dinâmica social e as forças que levaram à eleição de Donald Trump como presidente e as suas importantes implicações para a luta pela paz.

Contexto social: a divisão que se aprofunda

A eleição presidencial de 2016 ocorreu num momento em que a nossa sociedade esteve e continua a estar na sua maioria dividida e polarizada. A nossa sociedade tem vivido divisões profundas ao longo de muitas linhas de falha durante várias décadas:

-Décadas de racismo estrutural, sexismo e xenofobia;

-A militarização da polícia e crescente brutalidade policial contra as minorias;

-Fuga de capitais e investimento para o estrangeiro, que levou a níveis intoleráveis de desemprego e comunidades devastadas, especialmente entre os afro-americanos e de outras pessoas de cor;

-Um decréscimo visível da classe média e a estagnação de salários, trazendo dificuldades económicas, falência e um profundo sentimento de insegurança económica à maioria das pessoas;

-Expansão da pobreza e aumento dos sem-abrigo;

-A falta de cuidados de saúde adequados para dezenas de milhões de trabalhadores;

-Um estado de guerra perpétua no estrangeiro que não só levou à destruição de muitos países e a perda de milhões de vidas humanas, mas também absorveu quase todos os fundos governamentais para a educação, a saúde e a construção de infra-estruturas no país;

-A destruição do ambiente e as drásticas mudanças climáticas que ameaçam a vida de milhões de pessoas não apenas nos Estados Unidos mas em todo o mundo.

Tudo isto, e muito mais, criou um pólo de pessoas frustradas que exigem uma mudança fundamental na forma como o país está a ser gerido. De facto, foi a mesma maioria frustrada e irada que apoiou Barack Obama em 2008 com seu slogan de “mudança em que pode acreditar” e "Sim podemos”, para a decepção de todos, nunca se materializou.

O processo eleitoral

No início do período de campanha eleitoral, a principal linha de falha foi rapidamente marcada entre as forças pró-sistema e anti-sistema, em toda a sociedade e dentro dos dois principais partidos. Este fosso profundo levou ao apoio maciço para os candidatos de ambos os partidos que pareciam estar do lado anti-sistema: Donald Trump e Bernie Sanders (o primeiro, mais falso e o segundo, mais verdadeiro). A liderança pró-sistema de ambos os partidos, temerosos do enorme abanão que poderia resultar, tentou conter e remover (no caso de Sanders) ou "domar" tanto quanto possível (no caso do Trump) estes candidatos. As maquinações internas contra a nomeação de Sanders feitas pela liderança pró-sistema do Partido Democrático, que conduziu à selecção de Hillary Clinton como a candidata do partido, alienando um número significativo de apoiantes do partido e reduzindo drasticamente as probabilidades de uma vitória do Partido Democrático.

O palco estava montado para uma corrida entre uma candidata dos democratas visivelmente pró-sistema, pró-guerra, na qual muito poucos confiavam ou tinham motivação para votar, e um bilionário republicano de direita, racista, sexista, xenófobo, que contava com a enorme onda anti-sistema de frustração e com a indignação do povo. Ainda assim, até o último minuto, uma grande maioria dos observadores e analistas dos média empresariais assegurava as pessoas que um Trump racista, sexista e incompetente não tinha nenhuma hipótese de ganhar a eleição, promovendo assim mais complacência entre a oposição a Trump.

No entanto, para surpresa de todos, Trump venceu ao assegurar 290 votos no colégio eleitoral apesar de Clinton ter obtido mais dois milhões de votos. Este resultado expõe as falhas antidemocráticas do nosso sistema eleitoral antiquado no qual os candidatos podem ganhar uma eleição presidencial com uma minoria do voto popular.

Porque ganhou Trump?

Seria um grave erro atribuir a vitória do Trump exclusivamente ao apoio que recebeu das forças racistas, sexistas, xenófobas, neonazis e fascistas que estavam altamente motivadas e mobilizadas em toda a sociedade pela retórica e comportamento de Trump durante a sua campanha. É verdade que durante esta eleição acordou uma besta adormecida, que irá assombrar e ameaçar a nossa sociedade por um longo período de tempo e os povos têm todos os motivos para temer e estarem preocupados com os graves danos que irá certamente causar.

Mas não foram sobretudo estas forças que empurraram Trump para o topo. Historicamente, estas forças têm estado sempre presentes e activas em todos os cantos da nossa sociedade, graças às falhas do sistema para lidar com o problema do racismo de uma forma fundamental. De facto, o tamanho e o impacto global das forças racistas na nossa sociedade têm diminuindo continuamente ao longo do tempo com o aumento do nível de consciência social e sensibilização. Isto não implica que o seu significado ou a necessidade de confrontar essas forças tenha diminuído. Pelo contrário, a intensificação da brutalidade policial e a opressão que os afro-americanos e outras comunidades de cor tem vindo a enfrentar nos últimos anos é uma demonstração clara do facto de que o racismo está a perder terreno entre a maioria da população dos Estados Unidos e que a resistência ao racismo é cada vez mais forte, não só na comunidade afro-americana mas entre outras comunidades minoritárias e a população branca também. De facto, as recentes eleições mostram que numerosos estados maioritariamente brancos, tendo votado duas vezes em Obama, mudaram para Trump em 2016, sugerindo que o racismo não foi o motivo central na sua votação.

Ao mesmo tempo, devemos ter considerar que o activismo crescentemente visível dos racistas e das forças populistas de direita na nossa sociedade não acontece num vácuo, nem é exclusivo aos Estados Unidos. A história tem demonstrado repetidamente que durante qualquer fase de crise sistémica do capitalismo, o racismo, o chauvinismo nacional, a xenofobia e tendências populistas de direita tornaram-se mais vocais, activas e influentes. Na Europa, também, partidos populistas de direita estão a crescer (Le Pen em França, UKIP na Grã-Bretanha, o partido Alternativa para a Alemanha; e noutros lugares). O crescimento da sua votação representa um crescente protesto contra a "globalização" (comércio livre, fronteiras abertas, exportação de capitais e postos de trabalho, e política externa assente na "mudança de regime"; em suma, tornar o mundo seguro para o capital transnacional sacrificando a vida das pessoas comuns).

Foi isto que garantiu a vitória de Trump. Não o seu flagrante racismo e sexismo, mas a sua hipócrita e vocal oposição à "globalização" que tem empobrecido milhares de milhões de pessoas pelo mundo e oposição ao sistema político corrupto em Washington. Foi isto que ressoou com um grande número de trabalhadores, especialmente em estados com a sua indústria devastada, lhe assegurou o colégio eleitoral que precisava apesar da falta geral de apoio popular a nível nacional.

Os média tem tentado distorcer este fato ao afirmar que foram os trabalhadores brancos que o ajudaram a vencer as eleições. Por outras palavras, foram os racistas que o elegeram. Mas nada pode estar mais longe da verdade. Esta é uma distracção intencional para desviar a atenção das principais causas da vitória de Trump, e um aviso a todos para não voltar a cair nesta armadilha. Nem todos os que votaram a favor do Trump são racistas, embora ele próprio o seja, e todos nós deveríamos certamente continuar a lutar vigorosamente contra o racismo. Mas um número muito significativo de eleitores de Trump protestavam contra sistema pró-corporativo, pró-guerra que devastou a vida da maioria da população. É isso que nos une a todos, independentemente de em quem votámos nesta eleição.

O que podemos esperar da Administração Trump ?

A questão é a seguinte: agora que Trump ganhou a eleição enquanto populista de direita, será que ele vai governar como um populista de direita? Vejamos algumas das promessas contraditórias que fez sobre questões de política externa e guerra, que são de interesse central para o movimento de paz.

Trump perguntava em voz alta se a NATO está ultrapassada, e disse que pelo menos deveria haver uma melhor partilha de encargos pelos aliados para pagar a NATO. Favoreceu a cooperação com a Rússia de Putin em vez do confronto. Expressou cautela sobre o apoio aos “rebeldes moderados” na Síria, dizendo que iria conduzir a uma guerra com a Rússia.

Por outro lado, ele ameaçou usar armas nucleares contra o ISIS e reavivar o uso da tortura. A dado momento, prometeu maior equilíbrio sobre o conflito Israel/Palestina, mas ao mesmo tempo comprometeu-se a deslocar a embaixada dos EUA em Israel para Jerusalém. Ele também manifestou uma atitude arrogante sobre o uso de armas nucleares e salientou a necessidade de "restaurar" a força militar dos EUA aumentando o já enorme orçamento militar. Disse que iria manter Guantánamo aberta, enquanto o seu vice-presidente eleito, Pence, por seu lado prometeu desfazer a limitada normalização das relações com Cuba iniciada por Obama.

Certamente as declarações sobre política externa de Trump são mistas. Mas algumas, se levadas a cabo, serão contra o actual sistema político. Cabe nos a todos exigir que ele honre as suas posições populistas e descarte as reaccionárias. E nós só podermos ter sucesso se houver suficiente pressão das massas construída a partir de baixo.

Sabemos muito bem que nenhum Presidente dos Estados Unidos toma decisões políticas sozinho. Existem muitos sinais que os republicanos convencionais no Congresso e todos os interesses corporativos atrás deles estão a cercá-lo para garantir que as suas posições populistas sejam esquecidas em breve, e que só a suas políticas racistas e de direita permaneçam. Democratas e liberais pró-sistema não o irão desafiar a honrar as suas posições populistas. Vamos aprender em breve que faceta de Trump irá triunfar sobre a outra, à medida que pessoas chave do seu gabinete e as prioridades do orçamento se tornarem evidentes.

O seu problema é que qualquer direcção ele escolha, ele irá enfurecer e perder uma parte significativa de sua base de apoio: ou os seus apoiantes anti-sistema que desejam mudança, ou os republicanos (e democratas) do sistema que sejam manter o status quo. A história tem mostrado que na ausência de um movimento popular forte, unificado e activo, a sorte será do sistema.

O nosso caminho é para a frente

Com tudo isto, é imperativo que o movimento da paz e justiça concentre a sua atenção na dinâmica social, nas forças sociais e políticas em vez de se concentrar em Trump como um indivíduo. Apesar de todas as questões negativas e os perigos a que a eleição do Trump deu origem, há um lado positivo, a sua eleição pôs a nu todas as contradições do sistema existente a todos os níveis: o racismo, o sexismo, a xenofobia, a devastação causada pela globalização corporativa, a guerra perpétua e a profunda corrupção do sistema político em Washington, DC.

A vitória de Trump não é um mandato para a guerra e o racismo. Há motivo para nos preocuparmos, mas não para o desespero. O resultado eleitoral reflectiu principalmente um desejo do eleitorado por mudança. O uso que a campanha de Trump fez do racismo, islamofobia e sexismo não nega esta realidade. Existem algumas características positivas nas posições de campanha contraditórias de Trump em matéria de política externa, por exemplo, a sua abertura para uma atitude mais pragmática em relação à Rússia. Evidentemente, as forças pró-guerra vão mover céus e terra para garantir que os elementos populistas nas suas declarações desapareçam e seremos deixados com uma Administração republicana de direita convencional. Por conseguinte temos de intensificar a luta pela paz e sair para as ruas em grande número.

Concentrando nas exigências populares que foram levantadas durante esta eleição por Trump, Clinton, Sanders, ou Jill Stein, podemos unir e unificar todas as forças populares, incluindo a maioria daqueles que votaram em Trump (quer como um voto de protesto ou com base num desejo de mudança sistémica) num movimento o mais amplo possível, que aborde todas as falhas estruturais do sistema que estejam directamente relacionadas com a exploração corporativa imperialista e o belicismo militar-industrial.

A nosso ver, é a única forma de desfazer os efeitos negativos desta eleição e implementar as mudanças fundamentais pelas quais os povos do nosso país e do mundo vêm lutando há muitas décadas.