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nao podemos respirar por carlos de oliveira garcia 1 20200608 1872963068

Subitamente, neste mês de junho de desconfinamento cauteloso face a um vírus perigoso, eis que um outro tão ou mais virulento fez soar o alarme nas consciências de mulheres e homens, jovens ou menos jovens, inquietando-os e levando muitos a tomar partido pela justiça, decência e humanidade. Até quando esse desconforto visível e audível irá durar não se sabe. Mas enquanto durar é bom para o ambiente.

«I can’t breathe», o apelo aflitivo de George Floyd antes de morrer, percorre o mundo à velocidade da indignação e revolta contra a brutalidade racista nos EUA. Este crime é mais um de uma longa série de crimes idênticos perpetrados por forças policiais, contra os seus concidadãos afro-americanos mas não só.

A brutalidade policial, discriminação racial e violência contra as minorias estão enraizadas e impregnadas na história dos EUA desde a sua fundação.

 

Com o liberalismo, a escravatura passou a ser aceite na colónia americana e adquiriu um caráter racial e mercantil que ficou consagrado na estrutura jurídico-constitucional do novo estado independente, ainda que com eufemismos e rodeios. Um negro era escravo e a sua descendência também. Liberais proeminentes, presidentes e vice-presidentes do novel Estado acreditavam (acreditam?) que a supremacia racial era o fardo do homem branco. Alguns desses políticos e pensadores liberais eram mesmo escravocratas.

Não é de agora que os agentes da lei norte-americanos usam a sua autoridade para controlar a população negra. Desde há muito que o fazem, como é referido no The Boston Globe (01-06-2020). No período anterior à Guerra Civil, patrulhas tinham por missão perseguir escravos em fuga, através do país. Depois da abolição da escravatura, os negros passaram a ser detidos e punidos por infrações que, se não fosse a cor da pele, seriam consideradas sem importância. Mesmo nos estados da União em que tinham direito de voto, os negros corriam risco de vida se o exercessem, e não podiam contar com os tribunais para fazer aplicar a lei. O Ku Klux Klan – organização de supremacistas brancos que ainda hoje subsiste e a que, um século depois da Guerra Civil, muitos membros das forças policiais ainda pertenciam – massacrava e matava impunemente.

A discriminação racial e o preconceito social confundiam-se, atingindo afro-americanos, índios, asiáticos, latino-americanos e… brancos pobres (apelidados de white trash). Com a Lei dos Direitos Civis, de 1964, a proibição de casamentos inter-raciais e a segregação nos transportes, lavabos públicos e acesso à universidade foram formalmente abolidas mas o pesado legado de racismo e discriminação não desapareceu e continuou a permear a sociedade, refletindo-se no relacionamento entre as autoridades e as comunidades mais pobres, nomeadamente a comunidade afro-americana.

A violência policial nos EUA continua ligada a um sistema que visa manter uma hierarquia social baseada na crença da superioridade racial dos brancos. Ou, talvez mais exatamente, dos brancos ricos. O risco de um negro, índio ou latino-americano ser morto pela polícia durante a vida é, respetivamente, 2.5, 1.7 e 1.4 vezes superior à de um branco (Proceedings of the National Academy of Sciences, 2019, 116 (34), 16793-16798). A raça funciona como marcador do local de pertença da pessoa e a discrepância entre uma e outro é motivo suficiente de suspeição (Crime & Delinquency Journal, 2019, 65 (4), 499-526). A comunidade negra é com frequência associada a estereótipos negativos como “perigoso”, “agressivo”, “violento” ou “criminoso” (Journal of Personality and Social Psychology, 2004, 87 (6), 876-893), e isso enforma as decisões e táticas policiais.

Preconceito que necessita de parasitar o poder para se afirmar, o racismo é usado como instrumento de divisionismo e opressão social, sobretudo quando a luta por direitos sociais ou laborais se agudiza. Pode estar implícito em comportamentos individuais, contaminar instituições, ou ser varrido para debaixo do tapete pelo alegado “tratamento por igual, sem olhar à cor da pele” (o chamado color blindness racism). Seja como for, nunca deve ser subestimado. Nas sociedades onde alcança expressão significativa é um sério obstáculo ao desenvolvimento da sociedade, à luta pelo progresso social e pela paz. Combatê-lo é condição necessária da convergência de vontades em prol da solidariedade, cooperação, justiça social e paz.

Que não o esqueçamos, mesmo depois de a morte de George Floyd deixar de ser notícia.

3 de junho de 2020

*membro da Direção Nacional do CPPC