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Por António Avelãs Nunes, Professor Catedrático e Presidente da Mesa da Assembleia da Paz do CPPC

11/01/2015

Tenho acompanhado as imagens e os comentários sobre o massacre na sede do Charlie Hebdo, em Paris. Também eu penso que se trata de um massacre, algo que a civilização não pode comportar. Mas também penso, creio que bem acompanhado, que, no plano político, se queremos combater a barbárie e preservar a civilização, não podemos limitar-nos a protestar contra este massacre e a chorar a história trágica dos assassinos e dos assassinados.

Creio que é necessário recordar que foi o terrorismo que, em 1948, expulsou milhões de palestinianos das suas casas e das suas terras. E lembrar que os crimes por terrorismo não prescrevem. E lembrar que um dos mais célebres terroristas desse tempo (Menahem Begin) foi anos depois Primeiro-Ministro de Israel e condecorado com o Prémio Nobel da Paz (como, entre outros, Kissinger, Obama e a UE). É preciso não esquecer que, desde 1967, Israel ocupa ilegitimamente, território palestiniano e que ninguém, na dita ‘comunidade internacional’, se lembrou de invadir Israel e matar o ‘ditador’, como fizeram com o Iraque. É preciso recordar que esta situação (com a construção ilegal dos colonatos, a construção do ‘muro da vergonha’ e muitas outras vergonhas - toleradas, estimuladas e pagas - pelo ‘mundo livre’) constitui uma humilhação para os palestinianos e para o mundo árabe. É preciso não esquecer que a Carta da ONU reconhece aos povos ocupados o direito de resistir à potência ocupante por todos os meios, incluindo a luta armada.


Ninguém (entre os democratas) condena as forças da Resistência pelos atos de ‘terrorismo’ praticados contra o ocupante nazi; os salazarentos chamavam terroristas aos combatentes dos movimentos de libertação que Paulo VI recebeu no Vaticano; o ‘mundo livre’ (vá lá…, uma boa parte dele) chamou terrorista a Nelson Mandela e achou muito bem que ele estivesse preso por não renunciar à luta armada, até chegar à conclusão de que, afinal, aquele ‘terrorista’ era uma referência moral do mundo inteiro.

 

Talvez o ato mais importante (oxalá decisivo) contra o terrorismo islamita fosse obrigar Israel a cumprir as múltiplas decisões da AG da ONU no sentido de entregar aos palestinianos o território que lhes pertence (e já se deixa de lado o território pilhado pelas ações terroristas de 1948 e antes). Após a constituição do estado da Palestina (com a capital em Jerusalém), então poderia exigir-se ao estado palestiniano e ao povo palestiniano que respeitasse a soberania e a segurança do estado de Israel. Não consigo perceber porque é que a dita comunidade internacional, quando se fala de abrir caminhos para a paz no Médio Oriente, nunca começou pelo princípio: vamos obrigar Israel a cumprir a legalidade internacional. No entanto, a mesma ‘comunidade internacional’ (isto é, G. W. Bush e Associados) levantaram a bandeira do incumprimento por Sadam Hussein de deliberações da ONU sobre armas químicas para ‘justificar’ a invasão do Iraque. E sabiam que o Iraque não tinha armas de destruição maciça!


As televisões anunciam que o Primeiro-Ministro de Israel estará na manifestação do próximo domingo contra o terrorismo e pela liberdade de imprensa. É uma enorme hipocrisia e mais uma provocação ao mundo árabe permitir que Netanyahu (que comete atos inaceitáveis de terrorismo de estado, muito mais grave do que o terrorismo dos ‘fanáticos’) desfile ao lado dos que protestam contra o terrorismo. Como classificar os bombardeamentos de Israel sobre territórios palestinianos, sacrificando milhares de inocentes, incluindo crianças palestinianas que brincam na praia? Como classificar os atos do estado de Israel que, recorrentemente, destrói as casas de família dos familiares dos palestinianos que cometem atos de terrorismo contra cidadãos israelitas? Em nenhuma civilização os crimes de uns podem incriminar outros, só porque são familiares do criminoso. E se a vendetta é repugnante quando praticada pela máfia, é muito mais repugnante quando praticada por estados que se dizem civilizados. Como seria bom que, depois da barbárie nazi de Guernica e de Oradour, crimes destes não se repetissem…


Pois bem. Netanyahu desfilou em Paris, na 1ª fila, fazendo campanha eleitoral em nome da defesa da liberdade de imprensa e tentando fazer passar a mensagem de que este ato terrorista (condenado na rua por milhões de pessoas) foi uma ação contra Israel, um país pacífico, tolerante, não racista, cumpridor da legalidade internacional… Pode ser que não compreenda cabalmente a situação, mas devo confessar que não percebi muito bem as razões que terão levado o Presidente da Palestina a desfilar ao lado de Netanyahu.


Em consequência de bombardeamentos e outros ataques israelitas, morreram, em 2014, 600 crianças palestinianas da Faixa de Gaza, algumas em escolas das Nações Unidas, devidamente identificadas como tal no telhado e perfeitamente conhecidas de Israel. Terão sido mortas para defender a liberdade de imprensa? As tropas israelitas mataram 13 jornalistas em funções na Faixa de Gaza (os nomes foram publicados num comunicado da ONU), vários deles alvejados deliberadamente pelos militares israelitas, que sabiam tratar-se de jornalistas. Deviam difundir notícias não cobertas pela ‘liberdade de imprensa’ conveniente ao estado de Israel…, transformando-se assim em alvos legítimos da barbárie. Já depois do cessar-fogo acordado entre Israel e o Hamas, morreram mais dois jornalistas (um palestiniano e um italiano), em consequência do rebentamento de uma bomba lançada pela aviação israelita que não explodira na altura do lançamento. Estavam no lugar errado à hora errada, como costuma acontecer à generalidade das vítimas do terrorismo. Ou talvez estivessem a abusar da liberdade de imprensa... Uma coisa é certa: para os advogados do pensamento único, não se trata de terrorismo, foram meros “danos colaterais”… Será que não podemos chamar-lhe terrorismo de estado? E como classificar os governantes responsáveis por práticas de terrorismo de estado? Não serão terroristas? Porque não se mobilizaram as ‘franças’ do mundo e todas as televisões do mundo para protestar contra o assassinato destes jornalistas? A liberdade de imprensa pela qual eles lutavam vale menos do que a liberdade de imprensa dos jornalistas do Charlie Hebdo?


O que eu penso é que este massacre dos jornalistas franceses é mais um episódio desgraçado de uma guerra global feita pelo e em nome dos interesses do famoso complexo militar-industrial, que não deixou Eisenhower governar segundo a sua vontade, que impôs ao mundo a guerra fria e todas as guerras quentes que fizeram do século XX um inferno e que continuam a marcar o séc. XXI. Em nome desses interesses é que o ‘mundo civilizado’, defensor da liberdade de imprensa, da tolerância e de todas as virtudes republicanas, criou, doutrinou, treinou, armou e pagou (e paga) os bandos terroristas islamitas inventados para expulsar os soviéticos do Afeganistão e depois replicados em várias outras situações. Talvez sejam esses mesmos interesses que impediram Obama de cumprir a promessa eleitoral de encerrar Guantánamo e que continuam a impor a Cuba o bloqueio que, há mais de 50 anos, constitui um verdadeiro flagelo para o povo cubano, à margem do Direito Internacional e repetidamente condenado pela Assembleia Geral da ONU, apenas com os votos contra dos EUA e de Israel. Será abusivo considerar este bloqueio uma prática continuada de terrorismo de estado?

 

Foi em nome da tolerância laica e republicana que todas as franças do ‘mundo civilizado’ inventaram o Kosovo (um ‘país’ que dá cobertura a uma base americana, entregue a bandos de terroristas e traficantes de mulheres, de armas, de droga e de tudo o que dê dinheiro) e o entregaram a extremistas islamitas? Foi a defesa da liberdade de imprensa que justificou, aqui há anos (1999, salvo erro), o bombardeamento pela NATO do edifício da televisão sérvia, provocando dezenas de mortos?


Na altura, o porta-voz do Pentágono justificou o ataque invocando que a TV da Sérvia fazia parte integrante da máquina de guerra de Milosevic. Quem se admira que os fanáticos do Islão pensem que o Charlie Hebdo faz parte integrante da máquina de guerra do ‘ocidente’ contra o Islão? Dos fanáticos não pode esperar-se racionalidade (para já não falar de decência e de humanidade), mas do Pentágono (e da NATO e da ‘Europa’ que apoiou os EUA) temos o direito de exigir racionalidade e respeito pelos valores do homem. Recordo-me de ouvir então o ‘não-terrorista’ Tony Blair declarar na TV (uma TV boa, com certeza) que a TV sérvia era um alvo militar legítimo. Certamente porque apoiava o Presidente Slobodan Milosevic (que os EUA tinham declarado inimigo) e difundia notícias (até podiam ser inverdades…) que não agradavam ao Sr. Blair e aos ‘civilizados’ dirigentes da NATO. Como nega agora o Sr. Blair idêntico ‘direito’ aos que se sentem ofendidos com os textos e cartoons publicados pelo Charlie? A liberdade de imprensa da TV sérvia era má e a liberdade de imprensa da Charlie é boa? Quem define, então, o que é bom e o que é mau? Não poderemos dizer que o Sr. Blair (e outros vários Blaires…) são tão terroristas como os que agora assassinaram os jornalistas do Charlie? Com algumas diferenças: os Tony Blair mentiram aos seus povos e ao mundo, fizeram guerra ao Iraque (e depois à Líbia e agora à Síria) e mataram centenas de milhar de inocentes; nenhum deles foi morto pela polícia francesa; nenhum deles irá responder no TPI por crimes contra a humanidade.


Pergunto: foi em nome de quaisquer valores dignos do Homem que os Bushs e Blaires do mundo fizeram a guerra contra o Iraque, contra a Líbia e contra a Síria? Esta guerra não é terrorismo de estado, levado a cabo contra o eixo do mal de que falaram Reagan e G. W. Bush? Os milhões de vítimas que viram as suas vidas destruídas e os seus países destruídos não são vítimas de nenhum terrorismo? Então são vítimas de quê? Ou morreram de morte natural? 


Quem criou e armou o bando dos “Amigos da Síria”? Estes ‘amigos’ não serão agora os ‘amigos do “estado islâmico”? Como em tantas outras situações da vida, o feitiço parece voltar-se agora contra o feiticeiro… Dramaticamente, talvez os ‘terroristas islamitas’, criados, doutrinados e pagos pelo ‘império’ atuem, sem se dar conta disso, por conta desse mesmo ‘império’, em todos os ‘estados islâmicos’ do mundo, em todas os ataques contra todos os Charlies em qualquer parte do mundo (no Mali, na Nigéria, na República Centro-Africana…).


E o que se passa na Ucrânia, entregue a bandos fascistas e facínoras, depois de um processo de luta que não seria tolerado em nenhuma capital europeia, nem mesmo em Lisboa (quem se esquece do gravíssimo atentado à democracia cometido pelos polícias que subiram umas quantas escadas que dão acesso ao edifício da AR?). O massacre cometido na Casa dos Sindicatos de Odessa não foi um ato terrorista? Quantos milhões de pessoas se manifestaram contra ele? Os jornalistas assassinados merecem todo o respeito e toda a solidariedade do mundo. Mas os que foram chacinados na Casa dos Sindicatos de Odessa não merecem idêntico respeito e solidariedade?


Quero deixar claro que, a meu ver, um ato de terrorismo não legitima (não torna lícito moralmente) outro ato de terrorismo. O terrorismo não pode justificar-se à luz da civilização. Mas talvez ajude a compreendê-lo (o sono da razão gera monstros!). O que é certo é que nenhum dos ‘terroristas’ comprometidos com os massacres no Iraque, na Líbia e na Síria vão ser chamados ao TPI, criado para ‘julgar’ os que  são de antemão considerados os maus. E os crimes cometidos pelos que estão do lado dos bons não são crimes, são atos de heroísmo praticados em defesa da democracia e dos direitos humanos…


Esta ‘Europa civilizada’, que nos brindou (a nós e aos espanhóis) com trinta anos suplementares de fascismo, deu cobertura às prisões clandestinas semeadas pelos EUA em território europeu, verdadeiros Guantanamos onde muitas pessoas (quantas?) estão presas e são torturadas, anos a fio, sem culpa formada, sem acesso a advogado, sem contacto com a família, só porque os serviços secretos americanos decidem que assim seja (para combater o ‘terrorismo internacional’, é claro). Estes são crimes que deveriam envergonhar todos os defensores da liberdade, incluindo da liberdade de imprensa, em nome da qual, penso eu, os grandes órgãos da comunicação social silenciam estes e outros atos de terrorismo, as políticas sistemáticas e continuadas de terrorismo levadas a cabo por todos os Bush, por todos os Obama, por todos os Hollande-Sarkozys do mundo.

 

Por alturas do ataque às torres gémeas, o jornalista Francisco Sarsfield Cabral escreveu (no Público, creio) uma nota em que concluía mais ou menos deste modo: dizem agora que o mundo vai dar combate ao terrorismo internacional; pois bem: eu fico à espera para ver o que vai acontecer aos paraísos fiscais, por onde passa todo o tráfico de armas, drogas, mulheres, etc., e por onde passam as operações de financiamento do terrorismo internacional; se nada lhes acontecer, terei de concluir que o mundo, afinal, não quer combater o terrorismo internacional. Pois bem. O que aconteceu aos paraísos fiscais? O negócio corre de vento em poupa, cada vez mais próspero.


Olhando para a nossa Europa. Queremos maior atentado contra a democracia, contra a inteligência e contra a decência do que o desgraçado slogan tatcheriano NÃO HÁ ALTERNATIVA (TINA)? Querem maior obscurantismo do que isto? Isto não é uma nova Inquisição? Não é em nome deste dogma que se estigmatizam todos os que não concordam com ele e persistem em proclamar a sua fé na liberdade de pensamento dos homens? Não é em nome deste dogma que se vêm aplicando as políticas de austeridade salvadora, humilhando povos inteiros, num retrocesso civilizacional perigosíssimo? Não são estes dogmas que impõem os tratados orçamentais, com todas as suas ‘regras de  ouro’ e outras de metais menos nobres, que matam a soberania dos povos da Europa e reduzem os ‘povos do sul’ a um indisfarçável estatuto colonial? Não são estes dogmas que, matando a soberania nacional, estão a liquidar o único quadro dentro do qual pode lutar-se pela democracia, pela liberdade, pela civilização? Estas ‘políticas terroristas’ não justificarão muito mais a unidade de todas as franças da Europa e do mundo contra aqueles que friamente as aplicam todos os dias e não apenas no desgraçado dia do massacre dos cartonistas do Charlie Hebdo? Não são estes os dogmas que todos os dias amordaçam a liberdade de pensamento, a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa? Se metermos bem a mão na consciência, teremos de responder que sim: estes são os dogmas do pensamento único.


Para não remar contra a maré, eu sou Charlie. Estou do lado dos que foram assassinados, não estou do lado dos assassinos. Mas estou também do lado de Mona Chollet, a jornalista do Charlie Hebdo que foi sumariamente despedida em 2000 por protestar contra um artigo do editor da revista (Phillipe Val) que chamava “não civilizados” aos palestinianos: então, a ‘liberdade de imprensa’ foi invocada para despedir uma jornalista, tendo-se conservado no seu posto o editor, substituído apenas em 2009 por Stéphane Charbonier, agora assassinado. E estou igualmente (que bom se estivéssemos todos…) do lado dos 34 estudantes que foram barbaramente sequestrados, torturados e assassinados pelas ‘autoridades’ mexicanas por quererem manifestar publicamente as suas opiniões. E estou do lado dos sindicalistas massacrados em Odessa. E estou do lado das vítimas do terrorismo praticado em todos os ‘civilizados’ guantanamos do mundo. E estou do lado de todas as vítimas do terrorismo, desde as vítimas do terrorismo de estado (“danos colaterais” de bombardeamentos ou vítimas de drones criminosos) às vítimas do fanatismo de todas as religiões e às vítimas do sectarismo classista das políticas praticadas em nome do argumento TINA, que vêm empobrecendo e humilhando povos inteiros nesta nossa europa do euro. 


Sou contra todas as formas de terrorismo, sejam elas praticadas por religiosos fanáticos para defender o seu deus ou por estados ‘civilizados’ para combater o eixo do mal. Apesar de ateu, apavora-me ver que fanáticos religiosos (o cume da monstruosidade talvez esteja a ser atingido pelos criminosos do Boko Haram, na Nigéria) invoquem o nome do seu deus para justificar o terrorismo. A minha ‘teologia’ diz-me que, de certeza absoluta, não há nenhum deus que possa aceitar o terrorismo. Considero feliz, por isso mesmo, a capa do último Charlie Hebdo colocando Maomé a chorar os mortos no ataque ao jornal e a dizer “Je suis Charlie”.


Depois dos atos terroristas ocorridos em Paris, o cartoonista israelita Noa Olchowski publicou no jornal Haaretz um cartoon um que diz "Je suis Charlie, je suis Gaza", acompanhado deste texto: ”10 jornalistas mortos no ataque contra Charlie Hebdo; 13 jornalistas mortos no ataque contra Gaza no verão passado.” Parabéns a Noa Olchowski, parabéns ao Haaretz! Digo convosco: “Je suis Charlie, je suis Gaza”!

 

Segundo vi, na sequência desta publicação, jornal e cartoonista estão a ser alvo de uma campanha acompanhada com ameaças de morte. Estas ameaças devem visar a defesa da liberdade de imprensa, porque foi desencadeada por um quadro do partido Habayit Hayehoudi, cujo dirigente máximo, Naftali Bennett, esteve nas primeiras filas da manifestação de Paris a defender a liberdade de imprensa. 


Para terminar: ao contrário do que diz o nosso Primeiro, em todas estas ‘guerras terroristas’ quem se lixa é mexilhão! Mexilhões de todo o mundo, uni-vos!